O mundo vigiado


Vivemos tempos de pouca privacidade. Privacidade perto de zero. A opção a isso seria a morte ou a inexistência digital. Então, ficamos meio sem saída: vivemos “pelados no meio de uma grande avenida”, ou seja, com a sensação de estarmos extremamente expostos (e uma exposição que a gente mesmo provoca) ou inexistimos num mundo vivo, animado, cheio de novidades. Respondendo ao seu pensamento agora: não, não tem meio do caminho, não dá pra ser só um pouco vivo online. Ou você inexiste ou todo mundo vai saber o que você faz e quem você é.

Às vezes, brinco de Deus: tento descobrir coisas sobre pessoas de quem só sei o primeiro nome. E funciona, chego a acreditar na minha divindade! Com um nome, uma profissão e uma boa proficiência no uso do Google, descobri sobrenome, empresa onde trabalha, número da OAB, bairro onde mora e restaurante que frequenta. Poderia descobrir mais, mas meu interesse já havia acabado. Mas pode-se ir além, bastante além. E isso é uma revolução tão extraordinária que estamos nos tornando mutantes do que já fomos e nem temos tempo de nos dar conta.

Descobrir tudo sobre alguém em que se está interessado, checar um candidato a uma vaga, julgar a concorrente, bisbilhotar a vida de quem te substituiu num relacionamento. É tudo fácil: CPF, Telelistas, Twitter, Facebook, currículo, Instagram, lista de aprovados... Individualidade foi-se embora e a saudade no meu peito não mora ainda porque estamos anestesiados, embevecidos com tanta exposição.

Considerando as vidas em vitrine 24/7, eu chego num ponto ainda mais crucial das relações humanas. Se está difícil esconder ou simplesmente passar desapercebido, como trair? Como fazer algo sem rastro, sem vestígio. Mesmo que se fuja das redes sociais, não se esqueça dos aparelhos múltiplos, das senhas descobertas, dos Facebooks logados e das nuvens ou clouds, guardando os supostos “crimes”.
Nelson Rodrigues dizia que trair era mil vezes melhor que se desquitar. Nelson pode estar em baixa: politicamente incorreto, machista, safadão, diriam alguns. Mas o que ele pode ter dito é que o frio na barriga pode ser mais divertido do que a bandeira da vida aberta e transparente onde todos os envolvidos estão cientes de tudo.

Nelson hoje não conseguiria trair tão facilmente... Mesmo que tentasse ficar longe das redes sociais. O mundo ficou mais vigiado. Ele não escaparia, ao menos de um paparazzo. Não estou aqui fazendo a apologia da traição nem dos velhos tempos hipócritas. Sou progressista quase hipster — não vivo sem as novas tecnologias e todas as suas consequências.

Mas eu assisto ao programa ‘Amores Livres’, do GNT, de vez em quando. Mostra pessoas adeptas a relacionamentos abertos, transparentes — casais, trios, grupos de pessoas que levam uma relação amorosa e sexual de forma escancarada, sem traições ou ressentimentos, supostamente. E eles não me parecem organicamente, visceralmente felizes. E isso alimenta a pulga que vive atrás da minha orelha.

Deixo vocês com algumas reflexões sem respostas (será que um dia terão?):

Será a possibilidade de se saber de tudo um fator de mais contentamento?

Está o ser humano mais elaborado para relações mais verdadeiras e vigiadas?

Saberemos nós, humanos falíveis, viver sem trair, esconder ou mentir?

Ou, finalmente, estamos nós vivendo relações mais verdadeiras e fiéis ao que somos?

Esperemos o futuro. Só ele nos dirá o que pensar e no que acreditar.

Bia Willcox
biawillcox@gmail.com

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